Com o futebol encerrado para filhozes, é justo trazer ao blog uma modalidade amadora, bem em destaque na quadra festiva que atravessamos: o circo.
As maravilhas circenses fazem parte do imaginário das crianças. E a que existe na pessoa que aqui escreve só confirma a regra. Adoro circo. Julgo mesmo ser essa afinal uma das explicações por que me atrai o futebol.
Na verdade, o nosso campeonato parece um circo. Tem mágicos (que rechaçam a bola para lá da linha de golo, sentados dentro da baliza, sem que os árbitros vejam); tem ursos (especialmente nas claques que invadem as instalações dos próprios clubes a que pertencem); tem malabaristas (especialmente nos dirigentes que contratam jogadores e não lhes pagam, mas pagam-se a si); tem funâmbulos (especialmente os treinadores escorraçados após os primeiros jogos menos bem sucedidos); tem faquires (por exemplo, Peseiro acantonado em Alvalade enquanto cá fora os adeptos, mentalmente, o trespassavam com facões de gume duplo); e, enfim, tem bichos dentro de jaulas (que hão-de ser os «artistas» do «apito dourado», se a coisa correr bem).
Mas o episódio que quero relatar passou-se mesmo no circo verdadeiro. Se circo se pode chamar àquele desfile de carripanas que de vez em quando arribava às ruas da minha infância, numa pequena vila esquecida na solidão do Alentejo. E era sempre assim, não anunciava quando vinha nem tão pouco quando partia. Estava, e era uma alegria!
Naquela manhã de Dezembro, frio de cortar orelhas, quando a vila acordou estava lá o circo. Um arsenal de tábuas, ferros velhos, panos, bugigangas, e gente excêntrica que se movimentava constantemente de um lado para o outro, haviam transformado o largo da feira numa algazarra de sons e azáfama.
Daquela vez, à cabeça do cartaz vinha o número do trapézio. Era feito pela trupe «Águias Voadoras», formada por três acrobatas galegos: Benito Cabra, Pepe Carallós e um tal Juan Tarzan.
Tarzan, pescoço de touro, durante a semana que antecedeu o espectáculo evaporou-se, trocando os ensaios pelos amores ocasionais da deliciosa Mimi dos caniches amestrados. Canudos loiros a cair sobre os ombros, narizito arrebitado, lábios carnudos em forma de charuto havano – Mimi dava vida aos mortos. No decote arrojado, os seios arfavam-lhe como se alguma coisa lá de dentro tentasse libertar-se à estreiteza do cárcere.
Benito Cabra era, dos três, o único já conhecido naquelas paragens. Chamavam-lhe o Mandíbulas-de-Aço, epíteto que se deve ao facto de anteriormente ter lá actuado com um número ódacioso: agarrado ao trapézio pelas pernas, mantinha o partenaire suspenso de uma corda que ele segurava temerariamente, a oito metros de altura, com os próprios dentes. Na semana que antecedeu o espectáculo, a mesma em que Tarzan desaparecera nos canudos loiros da Mimi, também o veterano trapezista Benito Cabra protagonizou um episódio infeliz que haveria de contribuir para o abrupto final da sua vida de acrobata. Com um copito a mais e por causa de uma aposta patética, propôs-se demonstrar aos meus conterrâneos que ele, Benito Cabra, era ainda o grande Mandíbulas-de-Aço.
Reza a história que depois de ter derrubado um cabrito no meio da rua e de o submeter à vigorosa intenção de lhe fincar os caninos nos testículos, até o castrar, o animal ergueu-se, inflamado, e desapareceu por esses campos de Deus com a dentadura postiça de Benito a pender-lhe dos tomates.
Mas, indiferente aos incidentes de bastidores, dias depois aí estava o grande espectáculo inaugural! O número agora consistia no seguinte: Pepe e Tarzan subiam para um trapézio. Benito Mandíbulas, para outro. Pepe deslizava pelos braços de Tarzan até ficarem agarrados pelas mãos. Tarzan, de cabeça para baixo e seguro ao trapézio pelas pernas, ajudava-o a tomar impulso até Pepe se soltar, dando três voltas em salto mortal e sendo recebido nas mãos firmes de Benito Mandíbulas, que também o esperava de cabeça para baixo. Tudo se cingiu à rigorosa planificação, até ao momento que Pepe ia a metade da segunda cambalhota no ar e descobriu que Mandíbulas não o esperava com as salvadoras mãos dispostas para receber as suas, mas que as tinha metidas na boca. Na verdade, Benito estava a ajeitar a prótese dental, empenada nos tomates do chibato, o que obrigou Pepe a desfazer a cambalhota no ar, e a gesticular como gato na água em busca das mãos de Tarzan, que tampouco o esperavam. O galã movia-se distraído no trapézio, observando, embevecido, os peitos da deliciosa Mimi que vendia chupa-chupas aos espectadores, na plateia.
À beira da catástrofe, Pepe aferrou-se àquilo que as suas mãos encontraram primeiro, e que veio a ser o meio das pernas de Tarzan. O homem deu um grito lancinante, feroz, que extravasou a tenda e ecoou por toda a vila.
Ainda hoje quando vejo alguém em desespero (por exemplo, a lagartagem quando o modesto Halmstads, já no prolongamento, marcou o terceiro golo ditando a eliminação do Sporting da taça UEFA); ou quando me dá na gana rogar alguma praga a alguém (por exemplo, ao Presidente do FCP quando se põe a chamar nomes feios ao Scolari) – lembra-me sempre a cara do Tarzan, estatelado na pista, agarrado ao «abono de família» de olhos arregalados, com se quisessem saltar-lhe das órbitras.
– Nunca mais arranjarei outro! – gritava ele desesperado, com a mão entre as pernas, agarrado ao «intocável». – Nunca mais arranjarei outro!
Se semelhante pranto se referia a Pepe, seu grande companheiro das «Águias Voadoras», ou ao «intocável», nunca o cheguei a saber.