terça-feira, 5 de abril de 2011

Toques de Cabeça

ÀS ESCURAS
Por JMMA

Domingo, 3. Deixo o estádio envolvido em negrura. Escuridão física da noite que oculta o local numa opressão espessa. Sim, o travo amargo do resultado. Também, claro, o remate redentor devolvido pelo poste adversário mesmo ao cair do pano. Mas acima de tudo, (façam-me a justiça de acreditar) a treva metafísica de um acto no mínimo idiota, que nos envergonha.

E, embora seja verdade, não serve de argumento dizer que os outros fazem pior. Pela simples razão de que não podemos condenar os outros e depois praticar o mesmo tipo de actos. Estupidez maciça.

Reconforta-me, todavia, o que leio hoje nos jornais. Que o meu clube incorre em multa pelo apagão. Pois que incorra; acho até pouco pesada. Que o triste acto originou duras críticas ao Benfica. Não só por parte da polícia, mas também (e isto para mim é que é o principal) por parte dos próprios adeptos, entre os quais personalidades destacadas do clube, que aparecem inclusive a pedir à direcção a realização de um inquérito.

Felizmente, já na segunda-feira de manhã tivera a sorte de ouvir na TSF uma peça extraordinária que não resisto a reproduzir aqui, em transcrição livre do registo audio.

De Fernando Alves, Programa ‘Sinais’*, com a devida vénia:

“Quando lhe perguntaram por que obscura razão as luzes do estádio ontem tinham sido apagadas não se tratando de assinalar a ‘Hora do Planeta’, o treinador do clube da minha paixão respondeu “não sou electricista”. Bernardo Soares que era ajudante de guarda-livros escreveu noutro contexto e, claro, noutro desassossego “Nunca houve esta hora nem esta luz”. Foi isso que a minha incomodidade pediu ontem. Que aquela sombra, aquela vergonha perante um gesto inqualificável pudesse ser apagada como um pesadelo. Que se fizesse luz, que se fizesse dia ou de algum modo houvesse um curto-circuito na intolerância e na insanidade. Mas só me ocorriam os versos de Álvaro de Campos, que também não era electricista, era engenheiro naval e viajante: “Está escuro. Está muito escuro aqui. Sinto-me inútil aqui fechado. Mas é aqui que me sinto na escuridão. Na solidão”. E Luther King disse uma vez que não é possível a escuridão extinguir a escuridão, só a luz. Não é preciso ser electricista para o saber. E a vergonha? Como é que se extingue a vergonha?”

Valha-nos isso: o consolo de constatar que no Benfica, pelo menos, ainda há vozes autónomas e lúcidas prontas a fazer-se ouvir, livres de lógicas espúrias de lealdade e vassalagem. Pode não ser muito; pode mesmo não ser grande coisa; mas ainda assim marca uma pequena mas terrível diferença. Como relata um célebre poema do brasileiro Gonçalves Dias (hoje citado no Público): “Minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá;/as aves, que aqui gorjeiam,/não gorjeiam como lá”. Infelizmente.

(*) http://www.tsf.pt/Programas/programa.aspx?content_id=903681&audio_id=1822271

Sem comentários:

Enviar um comentário