GOLOS DE SONHO
Dedicado com simpatia aos meus amigos do Fêcêpê
«Há momentos na bida em que um dragon, para afogar o desgosto, só debe fazer uma coisa: é trincar um coirato e enfiar umas bejecas». – Isto considerava o Arménio de si para si, quando abandonava o Estádio, em passo de caso grave, depois daquele decepcionante e categórico «0-2» com o «Glorioso». Glorioso, o carago! – resmungava ele entre dentes.
Arménio, um tal trolha da Areosa, parente da estrela de rock Xico Fininho, está-se mesmo a ver que não é do Benfica: é fundamentalista do Fêcêpê. Tão fundamentalista que foi uma ofensa quando lhe disseram que tinha glóbulos vermelhos e brancos no sangue, e que não podia ser doutra maneira. «Olha-me este morcão! Oh valha-me Deus!», protestou ele defendendo à viva força que, no seu caso, os glóbulos não podiam ser outra coisa que não azuis e brancos.
A raiva daquele resultado – humilhaçon lampiona, dizia o Arménio – isso sim, fê-lo tornar-se azul. E jogo acabado, lá estava ele na figura daquele último adepto sozinho nas bancadas já vazias, a olhar para dentro de si com cara de Picolé. Suspenso da esperança vã de que a cruel realidade do «0-2» com baile!, afinal não passasse senão dum pesadelo.
Aquela cara de tristeza espessa que nenhuma luz é capaz de arrancar ao negrume, focada em grande plano pelas câmaras da televisão – era ele, Arménio, o trolha da Areosa, no fim do «show de bola». Era a cara da desolação. A desolação da derrota ali exposta aos olhos de toda a gente – a desolação desamparada e solitária, muda e trágica, sem um apelo, sem um grito. Só desolação.
Lá em baixo, o relvado deserto parecia um abismo – um tropel de imagens irreais – um campo de destroços.
Do exterior do estádio vinha-lhe o eco dos hinos triunfais que a piratagem lampiona entoava de peito aberto, inebriada pela vitória. «Bitória? Qual quê, os morcões tiberam foi baca!» – afiançava ele para se conformar. E lá ia, completamente f... (frustrado) a abandonar o estádio com cara de Bizalhão, e foi nessa altura que lhe ocorreu aquela tirada filosófica da bejeca e do coirato. E foi o que fez.
Moralmente reconfortado com o efeito antídoto das bejecas fresquinhas, meteu-se no Metro e lá foi ele para casa, de cachecol atado no pulso, acabar de curtir o desgosto. Ao abrir a porta, desanimado, esteve mesmo para se atirar para o chão de raiva. Mas não, deu mais dois passos e, aí sim, caiu na cama como uma baixa em combate. E vai daí começou a imaginar.
Começou por rever, com saudade infinita, os fabulosos golos do Gomes, o bota de ouro da sua infância; o tal calcanhar mágico do Madjer em Viena; o remate do Derlei que arrumou com os escoceses na final da UEFA em Sevilha; os 3-0 sem espinhas ao Mónaco… Momentos depois já se via ele próprio o «Camisola 10» a virar o resultado no jogo dessa noite contra a gajada lampiã. O terceiro golo (nesta altura já ia no terceiro…) é de penalty. Antes de ajeitar a bola na marca, beija-a carinhosamente. O coração batia-lhe com força e fazia tic-tac, tic-tac, como um relógio de sala com a corda toda. Tem um olhar de tigre para o guarda-redes. Naquele instante se houvesse uma mosca em todo o Dragão podia-se ouvi-la voar. Partiu, remate imparável… já está!
E a bancada dos super e dos ultra-dragões irrompeu em uníssono num aplauso ensurdecedor completamente rendida ao seu talento glorioso. («Glorioso», o carago! Bitorioso!). Levantando-se do chão no meio daquela explosão de abraços e cachações da praxe por parte dos colegas da equipa, ergueu naturalmente a cabeça… e viu, destacando-se da multidão em delírio o que lhe pareceu ser uma Bond-girl de cachecol azul a olhá-lo com olhos de promessa. Simulando um beijo no anel, Arménio fez questão de lhe dedicar aquele momento único.
E o sonho ganhou asas.
No Metro que decidira tomar ao regressar a casa, lá estava novamente a Bond-girl à frente dele. Descruzava as longas pernas para que ele pudesse apreciar melhor o irrecusável convite de uma flor tatuada vislumbrada lá no fundo. E agora já ela lhe pega na mão e o guia persuasivamente para o quarto.
Arménio tirou o cachecol diante do espelho, que se tornara quase fosco, onde mal se viam as suas feições dolorosas, de tanta sarrafada que tinha apanhado nesse jogo. Foi então que a Bond veio por trás dele, de mansinho, envolta no roupão azul-dragão, e ajudou-o meigamente a tirar a camisola. «Com jeitinho, para não doer» – dizia-lhe ela.
Quando, finalmente, conseguiu introduzir-se despido no frescor macio dos lençóis, a beldade que estivera quieta, a observar-lhe as nódoas negras nas canelas, meteu-se por seu turno, na cama, e colou ao dele o corpo nu, a aquecê-lo. Um abraço de lã, suave e morno, tão apaixonado, tão envolvente, que nem parecia real. Mas era-o. Eram bem reais esses braços lisos e delgados, como os de uma top-model do Canal Fashion, com sardas e tudo. E a sensação de planta silvestre que lhe dava aquele torneado suave dos seios, tão pequenos que lhe cabiam nas mãos! Os lábios húmidos que o beijavam! Nunca lábios nenhuns se haviam demorado tanto sobre aquele peito mais cabeludo que os coiratos, numa carícia assim lânguida e carinhosa. Os lábios dela percorriam-no, dulcíssimos, entreabertos, sobre a sua pele, que fremia, agradecida. E Arménio reclamava mais e mais o contacto dessa boca ávida. Como era bom estar lesionado! Abençoadas caneladas!
Sobre eles desdobrava-se um céu apoteótico: o próprio tecto do quarto cantava o hino dos super-dragões e as ovações rompiam por todo o lado, sem se poder distinguir de onde. E era tão lindo e repousante o brilho do écran gigante do estádio onde brilhava estático o score do jogo (FCP 3 – Benfica 2) seguido do nome do marcador e os minutos dos golos (Arménio: 80’, 85’, 89’ gp).
Olhando aquele quadro, com a mão dela na sua mão, Arménio sentia-se infinito.
De manhã, porém, acordou só.
Doía-lhe o estômago. Na boca, o gosto enjoativo do coirato da véspera trazia-lhe à lembrança daquela badana cabeluda a escorrer gordura. O sino dos Clérigos badalava-lhe dentro das têmporas. Ensebado até à alma, o coração deu-lhe um baque: como desencantar dinheiro até quarta-feira para pagar o ingresso do próximo jogo no Dragão?
Arménio está desempregado.
Uma coisa convém dizer ao Arménio: só há uma maneira de realizarmos os nossos sonhos – é acordar!
Dedicado com simpatia aos meus amigos do Fêcêpê
«Há momentos na bida em que um dragon, para afogar o desgosto, só debe fazer uma coisa: é trincar um coirato e enfiar umas bejecas». – Isto considerava o Arménio de si para si, quando abandonava o Estádio, em passo de caso grave, depois daquele decepcionante e categórico «0-2» com o «Glorioso». Glorioso, o carago! – resmungava ele entre dentes.
Arménio, um tal trolha da Areosa, parente da estrela de rock Xico Fininho, está-se mesmo a ver que não é do Benfica: é fundamentalista do Fêcêpê. Tão fundamentalista que foi uma ofensa quando lhe disseram que tinha glóbulos vermelhos e brancos no sangue, e que não podia ser doutra maneira. «Olha-me este morcão! Oh valha-me Deus!», protestou ele defendendo à viva força que, no seu caso, os glóbulos não podiam ser outra coisa que não azuis e brancos.
A raiva daquele resultado – humilhaçon lampiona, dizia o Arménio – isso sim, fê-lo tornar-se azul. E jogo acabado, lá estava ele na figura daquele último adepto sozinho nas bancadas já vazias, a olhar para dentro de si com cara de Picolé. Suspenso da esperança vã de que a cruel realidade do «0-2» com baile!, afinal não passasse senão dum pesadelo.
Aquela cara de tristeza espessa que nenhuma luz é capaz de arrancar ao negrume, focada em grande plano pelas câmaras da televisão – era ele, Arménio, o trolha da Areosa, no fim do «show de bola». Era a cara da desolação. A desolação da derrota ali exposta aos olhos de toda a gente – a desolação desamparada e solitária, muda e trágica, sem um apelo, sem um grito. Só desolação.
Lá em baixo, o relvado deserto parecia um abismo – um tropel de imagens irreais – um campo de destroços.
Do exterior do estádio vinha-lhe o eco dos hinos triunfais que a piratagem lampiona entoava de peito aberto, inebriada pela vitória. «Bitória? Qual quê, os morcões tiberam foi baca!» – afiançava ele para se conformar. E lá ia, completamente f... (frustrado) a abandonar o estádio com cara de Bizalhão, e foi nessa altura que lhe ocorreu aquela tirada filosófica da bejeca e do coirato. E foi o que fez.
Moralmente reconfortado com o efeito antídoto das bejecas fresquinhas, meteu-se no Metro e lá foi ele para casa, de cachecol atado no pulso, acabar de curtir o desgosto. Ao abrir a porta, desanimado, esteve mesmo para se atirar para o chão de raiva. Mas não, deu mais dois passos e, aí sim, caiu na cama como uma baixa em combate. E vai daí começou a imaginar.
Começou por rever, com saudade infinita, os fabulosos golos do Gomes, o bota de ouro da sua infância; o tal calcanhar mágico do Madjer em Viena; o remate do Derlei que arrumou com os escoceses na final da UEFA em Sevilha; os 3-0 sem espinhas ao Mónaco… Momentos depois já se via ele próprio o «Camisola 10» a virar o resultado no jogo dessa noite contra a gajada lampiã. O terceiro golo (nesta altura já ia no terceiro…) é de penalty. Antes de ajeitar a bola na marca, beija-a carinhosamente. O coração batia-lhe com força e fazia tic-tac, tic-tac, como um relógio de sala com a corda toda. Tem um olhar de tigre para o guarda-redes. Naquele instante se houvesse uma mosca em todo o Dragão podia-se ouvi-la voar. Partiu, remate imparável… já está!
E a bancada dos super e dos ultra-dragões irrompeu em uníssono num aplauso ensurdecedor completamente rendida ao seu talento glorioso. («Glorioso», o carago! Bitorioso!). Levantando-se do chão no meio daquela explosão de abraços e cachações da praxe por parte dos colegas da equipa, ergueu naturalmente a cabeça… e viu, destacando-se da multidão em delírio o que lhe pareceu ser uma Bond-girl de cachecol azul a olhá-lo com olhos de promessa. Simulando um beijo no anel, Arménio fez questão de lhe dedicar aquele momento único.
E o sonho ganhou asas.
No Metro que decidira tomar ao regressar a casa, lá estava novamente a Bond-girl à frente dele. Descruzava as longas pernas para que ele pudesse apreciar melhor o irrecusável convite de uma flor tatuada vislumbrada lá no fundo. E agora já ela lhe pega na mão e o guia persuasivamente para o quarto.
Arménio tirou o cachecol diante do espelho, que se tornara quase fosco, onde mal se viam as suas feições dolorosas, de tanta sarrafada que tinha apanhado nesse jogo. Foi então que a Bond veio por trás dele, de mansinho, envolta no roupão azul-dragão, e ajudou-o meigamente a tirar a camisola. «Com jeitinho, para não doer» – dizia-lhe ela.
Quando, finalmente, conseguiu introduzir-se despido no frescor macio dos lençóis, a beldade que estivera quieta, a observar-lhe as nódoas negras nas canelas, meteu-se por seu turno, na cama, e colou ao dele o corpo nu, a aquecê-lo. Um abraço de lã, suave e morno, tão apaixonado, tão envolvente, que nem parecia real. Mas era-o. Eram bem reais esses braços lisos e delgados, como os de uma top-model do Canal Fashion, com sardas e tudo. E a sensação de planta silvestre que lhe dava aquele torneado suave dos seios, tão pequenos que lhe cabiam nas mãos! Os lábios húmidos que o beijavam! Nunca lábios nenhuns se haviam demorado tanto sobre aquele peito mais cabeludo que os coiratos, numa carícia assim lânguida e carinhosa. Os lábios dela percorriam-no, dulcíssimos, entreabertos, sobre a sua pele, que fremia, agradecida. E Arménio reclamava mais e mais o contacto dessa boca ávida. Como era bom estar lesionado! Abençoadas caneladas!
Sobre eles desdobrava-se um céu apoteótico: o próprio tecto do quarto cantava o hino dos super-dragões e as ovações rompiam por todo o lado, sem se poder distinguir de onde. E era tão lindo e repousante o brilho do écran gigante do estádio onde brilhava estático o score do jogo (FCP 3 – Benfica 2) seguido do nome do marcador e os minutos dos golos (Arménio: 80’, 85’, 89’ gp).
Olhando aquele quadro, com a mão dela na sua mão, Arménio sentia-se infinito.
De manhã, porém, acordou só.
Doía-lhe o estômago. Na boca, o gosto enjoativo do coirato da véspera trazia-lhe à lembrança daquela badana cabeluda a escorrer gordura. O sino dos Clérigos badalava-lhe dentro das têmporas. Ensebado até à alma, o coração deu-lhe um baque: como desencantar dinheiro até quarta-feira para pagar o ingresso do próximo jogo no Dragão?
Arménio está desempregado.
Uma coisa convém dizer ao Arménio: só há uma maneira de realizarmos os nossos sonhos – é acordar!
Esta história não terá sido inspirada nos longos anos (14) que o meu amigo teve a sonhar por uma vitória na terra invicta? Ah, só uma rectificação a este conto maravilhoso: No Porto não se come coiratos!
ResponderEliminarAbraço e obrigado pela dedicação que fez aos portistas!
Quanto à fonte de inspiração: parece que é bruxo!
ResponderEliminarQuanto à gafe, paciência: retirem-se os coiratos do sonho, mas não a «febra»!...
Quando vou à bola, das coisas que me dá mais prazer depois do jogo, é ir às roulotes apinhadas de "chicos fininhos", comer uma bela de uma bifana com uma bejeca para escorregar melhor, e discutir as vicissitudes do jogo com os pareciros de bancada.
ResponderEliminarE não é preciso estar com cara de bizalhão...
Lembras-te em Setúbal Felgas?