quarta-feira, 24 de março de 2010

Toques de Cabeça

45 POR CENTO
Por JMMA



Sobre o discurso dos comentadores de futebol, habituámo-nos a cultivar uma série de mitos. Convencemo-nos de que são todos igualmente estúpidos e, depois, não estamos preparados para detectar nuances entre eles nem mesmo quando o génio nos aparece à frente. Por exemplo: ainda hoje quando recapitulamos as frases do futebolês sobre a Final da Taça da Liga não sabemos se havemos de colocá-las na secção de gaffes ou na de citações. Diz uma: «O jogo teve duas partes distintas». Vamos por partes (como diria Jack, O Estripador): é óbvio que um jogo de futebol tem duas partes. “Distintas”... Pois com certeza, mas poderia ser de outra forma! Diz outra: «O resultado é enganador». Enganador?... Será que o árbitro errou a contagem dos golos? Ou será que trocou as balizas onde eles entraram? Outra ainda, neste caso, a propósito do tal golo: «O futebol é isto mesmo». La Palice, o general que «momentos antes da sua morte, podem crer, ainda vivia», não diria melhor. «O basquetebol é isto mesmo», «Os matraquilhos são isto mesmo», «A caça às rolas é isto mesmo»... Tudo é isto mesmo.

Ouve-se tanta parvoíce que às vezes a gente até se confunde quanto à origem. Por exemplo: historicamente, quem é que primeiro falou em «chutar com o pé mais à mão» - foi o Gabriel Alves, como dizem metade dos inventários consagrados à contabilização dos lapsus linguae, ou foi João Pinto, o capitão de Viena, como diz a outra metade? E quem terá sido o autor desta verdade surpreendente: «A bola é redonda»? E deste lamento: «A bola não quis entrar»? E desta evidência: «Em alta competição os erros pagam-se caros»? Óbvio. E em baixa também... E em média também. Todos os erros têm um preço. Alto ou baixo, é subjectivo.

Uma coisa, porém, são os clichés ou os deslizes – que qualquer um comete – outra coisa são os bitaites científicos, só ao alcance dos grandes génios. Há dias, a comentar numa estação de rádio os resultados do sorteio para os quartos-de-final da Taça Europa, que emparceirou o Benfica com o Liverpool, eis que um afamado futebólogo (Joaquim Rita) teve este «remate certeiro» (cito de cor): «o Benfica tem 45% de hipóteses». Fiquei a pensar, por que não 42%, ou 37,5%!

Com certeza, o doutor do losango lá terá feito as suas contas. Só que, diz o cliché, «futebol não é 2+2». Entre a simplicidade da aritmética e a complexidade da física quântica há conceitos fugidios, mais do campo das sensações do que das ideias. Por vezes são tão necessários para perceber o que acontece em campo como as noções tácticas ou o palmarés dos jogadores. Se o futebol fosse tão simples como dois mais dois, nunca o Porto, uma semana depois de ter dado 5 ao Braga, levaria 3 do Sporting; o Cardozo e o Falcao não falhavam pénaltis decisivos; e o Braga seria uma impossibilidade aritmética.

O futebólogo é assim: pega num acontecimento, esvazia-o de qualquer ideia e disserta ‘ex-cathedra’ sobre ele. Escrevem tratados infindos sobre a táctica do losango. Discorrem até à exaustão sobre a relação entre o índice relativo de humidade atmosférica e a velocidade do «esférico» à flor da relva. Sabem de cor o número de assistências do Rui Costa, feitas com o pé esquerdo, no Euro 2004. Tudo isso para quê? Para bajular os vencedores ou denegrir os vencidos; nas mesmas pessoas, consoante as circunstâncias. Censuro, não porque veja grande mal nisso, apenas porque estes cientistas da bola se levam a sério e pretendem que nós assim os consideremos também.

Sinceramente, preferia a euforia histriónica do saudoso Jorge Perestrelo – preferia mil vezes aquele animador louco, aquele não-ser jornalista – a estes intelectuais da treta que sobem ao púlpito e, como pesassem batatas ou se vissem aos comandos duma playstation, têm o desplante de decidir duma penada a sorte duma eliminatória: são 45%! Ao menos Jorge Perestrelo divertia-nos.

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