UM LIVRO NO SAPATINHO
Por JMMA Resolvi «ser romano em Roma». Seguindo as pisadas dos donos da casa (isto é, do blogue), desta vez também eu vou aqui fazer uma ampla transcrição de um texto que, a propósito do futebol, revela «uma espécie de pureza inicial» bem a calhar com a quadra do Natal. Por isso, com a devida vénia:
“Vou levar o meu filho às Antas”
O meu filho mais novo fez agora seis anos: está a entrar na idade em que deve começar a ser introduzido a alguns dos horríveis rituais machistas lusitanos. O futebol, por exemplo.
Um dia destes, pego nele pela calada e aí vamos nós para Santa Apolónia, apanhar o Inter-Cidades para o Porto, a caminho do Santuário das Antas, do ronco do Dragão e do perfume do Jardel – nome que ele, aliás, já conhece de cor.
Visto que agora já começou a aprender a ler, o primeiro gesto há-de ser o de comprarmos leitura de viagem para os dois. Jornais para mim, BD’s para ele (embora eu também seja um grande leitor de BD, algumas das quais o deixam extasiado quando, por inadvertência, me esqueço delas ao alcance dele, como a BD erótica do Milo Manara). Comprada a leitura, iremos instalar-nos num compartimento e partilhar aquela excitação mágica dos minutos antes da partida do comboio. Aliás, tenho 300 kms pela frente para lhe ensinar toda a magia do comboio. […]
No tempo da minha avó, a velha travessia da periclitante ponte de D. Luís, à chegada ao Porto, era sempre antecedida de um acto de contrição, rezado em voz alta no silêncio da carruagem – e eu aterrorizado, de mão dada com ela, olhando as águas escuras do rio, lá em baixo, que esperavam para me engolir.
Disso, está agora poupado o meu filho. Infelizmente, já não chegaremos também a S. Bento […] Sairemos antes em Campanha e apanharemos um táxi para eu lhe mostrar a minha terra: a Boavista, a Foz, o Campo Alegre, a Ribeira. A meio do passeio lancharemos na «Arcádia», e deixaremos as malas no pequeno Hotel da Boavista, na Foz, onde na minha infância se passava as tardes a jogar poker. Às 8 partiremos para as Antas, o último quilómetro feito a pé, por entre um delírio de azul-e-branco que é um verdadeiro deboche para os olhos de um portista exilado em Lisboa. Jantaremos, numa barraquinha, uma sandes de «entremeada» e uma cola para ele, uma sandes de «coirato» e um copo de vinho verde, para mim. Um pacote de queijadas para o jogo, cachecóis e bandeiras e aí vamos nós, o coração descompassado ao ritmo do ruído surdo dos passos da multidão no cimento do Estádio. Das entranhas escuras desse monstro de betão emergiremos para a luz ofuscante dos holofotes junto aos quais a chuva forma fios de prata brilhando na noite. Lá em baixo, o relvado, lindo, perfeito, parece esperar para ser pisado só por deuses, não por simples mortais. De repente, ele estremecerá, a sua mão apertará a minha, excitado e assustado, os olhos fixos na «boca do túnel» pela qual saem correndo, um a um, os onze deuses de azul e branco, saudados por um grito de cinquenta mil gargantas: «Po-oo-orto! Po-oo-orto!» Então aí, o meu filho perguntar-me-á, como costuma fazer: «é o petra-campeão, pai, não é?» Este é o instante mágico, o instante iniciático, que sela para sempre o amor irracional entre um homem e um clube de futebol, um amor para a vida, que ninguém, jamais, poderá alterar. […]
Acho que esta meditação sobre a ingenuidade e a fé, sobre a transversalidade e o poder mágico do futebol, vale sobretudo pelo que nos faz recordar. Na verdade, também eu um dia levei o meu filho à Luz.
(Lembras-te? Até escrevemos o resultado na bandeira: Benfica-1, Braga 0. E também tu perguntaste «é o Maior, pai, não é?» Depois, mudámos de presidentes, trocámos de treinadores, tivemos mais de 400 jogadores, fomos os ‘losers’ do costume – mas fomo-lo juntos. E isso é o que mais importa.)
Voltando ao autor, custa-me perceber como é que alguém dotado de tamanha sensibilidade pôde tornar-se numa espécie de «Macaco Madureira» em prosa. Tanta pureza perdida! E lembrar-me eu que o Nobel Albert Camus dizia: «O estádio de futebol é o único lugar onde ainda me sinto inocente». Mas, enfim, em vésperas de Natal isso são contas de outro rsário.
Acho a sugestão um tanto portista. Mas faço-a na mesma. Se a história que transcrevi lhe despertou interesse, pode completá-la lendo Não Te Deixarei Morrer, David Crockett – Miguel Sousa Tavares, Oficina do Livro, 2001, 173 págs.
Festas Felizes!
Lembro-me de tudo. Da bandeira, do resultado daquele jogo e dos dez seguintes, que metodicamente escrevia na parte de trás da bandeira. Naquela altura havia sempre uma certeza e uma dúvida. A certeza era a vitória, a dúvida era por quantos. Lembro-me por exemplo dos 7-1 ao Penafiel.
ResponderEliminarLembro-me das bilheteiras, da azáfama e da agitação que para a minha idade eram mágicas. Aquela multidão a correr de um lado para outro de forma desorganizada e eufórica em tons de vermelho, eram tão inebriantes, que se não me levasses pela mão, deixava-me hipnotizado.
Mas passado este tempo todo uma coisa se mantém (sim, já nem o estádio é o mesmo)... o meu entusiasmo.
E a responsabilidade é tua. Obrigado!